A fuga de nós mesmos

Pedro Tângari
7 min readJun 11, 2019

A vida de leitor nunca é fácil.

Sempre compramos, ou ganhamos, mais livros do que podemos ler e essa lista é infinita — e nos lembra que não importa quantos livros lemos, ou quais, mas como cada livro lido nos muda e nos permite enxergar o mundo de outra forma.

E, como mágica, de vez em quando aparecem livros que nos dão essas “chaves” para enxergar a vida e seu funcionamento. E da mesma forma que já escrevi anteriormente, cheguei a outro título fantástico: o Sidarta, de Herman Hesse.

Siddartha Gautama é mais conhecido como o Buda, que fundou o budismo — apesar de Buda ser um título e existirem outros Budas — e o livro é um romance baseado nos ensinamentos e filosofia orientais que maravilharam o autor e o levaram a escrever um livro que te coloca dentro da história, sentindo o que o personagem sente, seja sua felicidade ou angústia.

Como já disse em outras oportunidades, não me compete analisar o livro por inteiro aqui ou, no caso, explicar sobre o budismo, pois não tenho moral nem conhecimento para isso. Mas posso falar sobre como o livro me mudou e o que levarei dele para a vida e as pessoas.

Sobre o que é o livro?

Sem dar muitos spoilers, o livro fala sobre a vida de Sidarta, um jovem que é exaltado por sua excelência em tudo mas que, inicialmente, abandona sua vida cotidiana para uma forma de peregrinação — ele não representa a história original do Buda, mas traz ideias que compõem o pensamento budista.

O protagonista começa então a viver diferentes situações, de forma que a cada uma que se passa ele aprende um pouco sobre a vida e qual seu verdadeiro propósito.

A grande questão é que Sidarta faz diversas descobertas em sua jornada, aprendendo a esperar, pensar, jejuar, amar, jogar, etc. Dentre todas as passagens do livro, duas me marcaram além do normal, e são elas que compartilharei a seguir.

Até quando aprender

Todos sabemos da importância de se estudar e aprender especialmente quando buscamos algum objetivo profissional ou acadêmico. No entanto, até quando podemos realmente aprender com o outro? Será que em algum momento precisamos descobrir o conhecimento dentro nós?

No romance, vemos o protagonista buscando conhecimento em diferentes doutrinas, mas em determinado momento ela as nega, as refuta, por acreditar que apesar da sabedoria dos mestres o que ele buscava de fato não poderia ser ensinado por palavras de outros. Ele precisaria viver aquilo que buscava, para se conhecer e assim alcançar seu objetivo, que era a iluminação.

“O fato de eu não saber nada a meu próprio respeito, o fato de Sidarta ter permanecido para mim um ser estranho, desconhecido, tem sua explicação numa única causa: tive medo de mim; fugi de mim mesmo! Procurei o Átman, procurei o Brama, o Átman, a vida, o elemento divino, o Último. Mas enquanto fazia isso, perdi-me“ (Sidarta, H.H., pg 42)

O problema é que quando buscamos demasiado conhecimento externo, em detrimento do interno, temos a impressão de estarmos em movimento e crescimento. Enquanto nossas tarefas podem depender de conhecimentos técnicos, são nossos comportamentos e forma de pensar que realmente determinam nossa felicidade.

Portanto, é fundamental que comecemos a buscar também o autoconhecimento, pois de nada adianta alcançar a mais alto prêmio material se internamente estivermos em conflito interno ou se nem soubermos o que temos dentro de nós. Por isso é fundamental pensar e falar sobre nossos sentimentos, o que é o primeiro passo para a conhecida “inteligência emocional”.

No século XXI este desafio fica ainda mais complexo, com a inundação de informação, aparências e irrealidade que a vida digital nos traz.

Somos capturados por distrações que nos ajudam a fugir de nós mesmos, pois a vida social nos traz satisfação e reconhecimento instantâneos através de likes e comentários. A medida de nossa vida se torna digital e líquida, com uma impressão ruim do que parece demorado e pessoal — afinal não se desenvolve autoconhecimento e inteligência emocional do dia para a noite.

Isso não significa que devemos abandonar a tecnologia e redes sociais, mas aprender a viver com elas de uma forma mais saudável — se realmente nos agregar algum valor, pois, como contarei em outro trabalho, desapeguei de minhas redes sociais e tudo está melhor.

Essa questão de aprendizado externo e interno me ajudou a questionar meus hábitos e conteúdos que consumia espontaneamente, me levando a escolhas mais saudáveis e mais alinhadas com meus objetivos.

Mas o principal mesmo foi me ajudar a dar os passos iniciais na minha jornada do autoconhecimento, que me surpreende a cada dia que passa pois me mostra o potencial que tenho dentro de mim — inclusive, este texto vem dessa jornada na qual me encontrei ao contar minhas descobertas neste canal.

Logo, qualquer jornada que busque somente conhecimento externo, isto é, conhecimento de nossa vida prática, me parece faltar uma peça. Se por um lado, atualmente precisamos de alguma prática para viver em nossa sociedade, por outro o autoconhecimento garante que façamos isso sem perder nossa essência, o que é fundamental para nossa sanidade e felicidade no decorrer da vida.

Como disse antes, podemos ganhar o mais alto prêmio material que, no entanto, pode ser da competição errada.

A analogia do rio

A busca pelo autoconhecimento já seria o suficiente para aprender em um livro, mas simplesmente sinto que esta passagem parece que foi escrita para mim, e quem sabe para você também:

“- Dize-me se o rio também te comunicou o misterioso fato de que o tempo não existe? — perguntou-lhe Sidarta, certa vez.

O rosto de Vasudeva iluminou-se num vasto sorriso.

- Sim, Sidarta — respondeu. — Acho que te referes ao fato de que o rio se encontra ao mesmo tempo em toda a parte, na fonte tanto como na foz, nas cataratas e na balsa, nos estreitos, no mar e na serra, em toda a parte, ao mesmo tempo; de que para ele há apenas o presente, mas nenhuma sombra de passado nem de futuro. Não é isso que queres dizer?

- Isso mesmo — tornou Sidarta. — E quando me veio essa percepção, contemplei minha vida, e ela também era um rio. […]“

(Sidarta, H.H., pg 102)

Respire agora. Não ficou claro para mim na primeira vez , se quiser pare um pouco e releia. Quando estiver pronta/pronto, vamos continuar.

A verdade é que por alguns dias fiquei com essa passagem na cabeça, como um quebra-cabeça que simplesmente não se encaixava. Até que entendi o que isso significava para minha vida quando me percebi ansioso pelo futuro, por minhas ambições, o que me fazia sofrer e ficar insatisfeito com o presente — e dormir mal.

Estava há dias com o futuro na cabeça, calculando as possibilidades possíveis e os melhores cursos de ação. Me debatia com o fato de não ter controle sobre algumas coisas e simplesmente não concordar com outras. Ia para o futuro e passado, tentando entender aonde errei e onde tudo ia dar. Era um processo sem fim, afinal nada posso fazer nestes dois instantes do tempo.

Porém, em um momento finalmente entendi como essa passagem poderia me ajudar: a verdade é que não há tempo, só há o presente, no qual podemos atuar hoje. No final, o futuro será uma sucessão de dias que chamamos de “hoje”, e é só neste que podemos agir.

De nada me adianta ocupar minha mente com ambições ou arrependimentos se eu nada fizer no presente para buscar o que quero e viver de acordo com o que aprendi.

Na prática, nosso passado só serve como memórias e nosso futuro como uma direção, assim como o rio que tem seu curso e que é foz, corredeiras e mar ao mesmo tempo. Nós somos nosso passado, presente e futuro ao mesmo tempo, pois tudo está conectado.

Além disso, o rio não julga seu trajeto, mas faz correções na medida em que vê necessário, pois não se pode prever uma mudança de terreno, por exemplo.

Essa história funcionou para mim como uma forma de entender que é bom ter ambições, mas elas não podem me dominar ao ponto de não estar presente ou totalmente insatisfeito com minha situação atual. Da mesma forma, meus arrependimentos não podem ser correntes para minha vida atual, e sim combustível para eu buscar mais novidades e seguir a direção que acredito ser a melhor.

É fácil falar

Sim, é fácil pensar de forma otimista quando se tem tempo para ler ou não está se passando uma situação de crise — até alguém viver algo, é impossível entender por completo.

No entanto, como em outros casos que já escrevi, acredito que a ideia não é resolver nossa vida e todos os seus males através do pensamento — talvez para um sábio, mas nós ainda não estamos lá.

Gosto de pensar que funciona como uma tentativa de encarar a realidade e encontrar pelo menos um pingo de felicidade, seja fazendo algo que gosta, aproveitando uma boa surpresa ou encontrando-se com aqueles que amamos.

E como é uma tentativa, não tem problema falhar, mas precisamos ter empatia com nós mesmos para tentar de novo, pois é essa série de tentativas que nos permitirá tirar algo de valioso da vida, de vez em quando, como na leitura deste livro.

Espero que este texto te encontre, te incentive a ler esta obra e que, assim como eu, te ajude a encarar a vida com mais leveza e busca pelo autoconhecimento.

Abraços,

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